O segundo dia de pesquisa de campo começa com uma visita à casa de seu Canário, pastor de cabras e ovelhas que participa do filme Estou me Guardando… Ao chegar, encontramos sua esposa, Branca, dois filhos e uma neta. Ela conta que Canário saiu para apanhar folhas para dar de comer aos bichos mas já deve estar voltando para almoçar. Enquanto o esperamos, conversamos com Branca.
Branca tem 43 anos. Antes da pandemia, trabalhava em um restaurante, que fechou as portas e demitiu os funcionários sem indenização, eles não tinham vínculo empregatício. Ela conta que, logo no início do lockdown, pegou covid-19, e ficou muitos dias doente, em casa. Ela não sentiu medo de morrer porque acredita que já viveu muito. Só tinha medo de contagiar os filhos. Conhece pessoas que morreram da doença. Ela não foi para o hospital porque tinha medo de ser entubada. Comprou os remédios que recomendaram por telefone na farmácia - gastou uns 200 reais de remédio - e conta que tomou "aquele que hoje não pode mais tomar"(cloroquina). Ela não sabe se o remédio fez efeito, mas ficou em casa até melhorar. Acha estranho que nem o marido nem os filhos pegaram a doença com ela.
Enquanto falamos, chega Canário, carregando em uma carroça as folhas que serão almoço das cabras e ovelhas. Canário diz que tem medo do corona. "É pior que na guerra porque na guerra as pessoas podem enterrar os seus mortos". É uma doença que tira a saúde da gente e também a dignidade "temos que andar na rua com máscara, com a boca e o nariz cobertos feito bichos". Para ele, a rotina não mudou muito. Segue levando os animais para pastar, fazendo a travessia na BR… Canário conta que, quando teve o lockdown e a feira fechou, os ricos continuaram vendendo pela internet e os pobres, que dependem da feira para vender, se lascaram.
Voltamos ao centro de Toritama para encontrar seu Zé Aurélio, o pedreiro que construiu um cinema com as próprias mãos, o único de Toritama. Ele abre o cinema para nos receber e conversar um pouco. Erik, seu neto, está junto, como sempre. Já um adolescente. Seu Aurélio nos mostra a reforma que fez nas cadeiras: trocou o encosto, que agora está mais firme e confortável. Fez isso para se ocupar, além de outras pequenas reformas no teto, nas paredes… Ele conta que passou o filme Estou me Guardando várias vezes no cinema e que foi um sucesso enorme, durante semanas.
Seu Aurélio teve covid forte, quase morreu, e recebeu profissionais de saúde em casa para cuidar dele. Teve muita febre, dor no corpo, perdeu a energia totalmente, não conseguia nem comer, emagreceu muito e teve que tomar soro na veia. O neto, Erik, ficou muito preocupado, com medo de perder o avô. Ele também pegou a doença, em uma versão mais leve. Seu Aurélio perdeu algumas pessoas queridas para a doença, dentre elas um amigo seu, companheiro de caminhada, com quem saía todos os dias para andar e se exercitar. Se sentiu muito só, no auge da doença e do isolamento. Depois que melhorou, ainda em isolamento, tirou as cadeiras do cinema para ficar caminhando dentro do espaço. Reformou o cinema e passou filmes só para os netos. Apesar de não saber quando é que o cinema volta a funcionar, ele acredita que as salas de cinema não vão acabar. O amor dele pelo cinema, pelo menos, vai durar a vida toda.
No fim da tarde, encontramos Valderiza, jovem empreendedora e comunicadora que apresenta, na rádio Líder FM, o programa semanal Cultura Viva, onde entrevista pessoas ligadas à cultura e arte na região. Valderiza nasceu em Toritama e é formada em Comunicação pela UFPE. Ela tem uma visão crítica da sociedade, opiniões contundentes e, além de apresentar o programa na rádio, também cria peças para uma confecção própria e trabalha como assessora de comunicação para uma vereadora da cidade.
Valderiza nos leva ao seu lugar favorito de Toritama, que ela chama de santuário das pedras, e fica na zona rural, muito próximo da estrada para Vertentes. Chegando ali, conversamos um pouco sobre a sua visão da cidade, da juventude e do futuro. Se considera uma sobrevivente nessa cidade em que o destino dos jovens, sobretudo das mulheres jovens, é muito limitado. Valderiza gosta de falar sobre política. Ela diz que quem entender Toritama, entende o Brasil. Ela acha que Toritama é o que certos governantes querem que o Brasil seja. Uma cidade em que o Estado é mínimo e o neoliberalismo é máximo.
Val admite que o jeans é uma atividade importante para a cidade, mas lamenta que, para a maioria das pessoas, seja a única alternativa de sobrevivência. Valderiza assistiu o filme "Estou me guardando pra quando o carnaval chegar" e gostou bastante. Ela acha que tem reflexões importantes e diz que é natural que uma parte da população não goste porque é "a primeira vez que a cidade se viu no espelho", e o que viram não é fácil de aceitar, principalmente para quem vive em busca de ilusões e promessas impossíveis.
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